A vida me consumiu
Publicado em 28 de maio de 2016
Quando se é jovem o tempo parece andar mais devagar. Todo jovem não vê a hora de ser dono do próprio nariz. O jovem quer criar asas e voar. Quer sua alforria. São sonhadores e isso é ótimo. Esse processo de ‘libertação’ não tarda a chegar. Quando menos esperamos, num piscar de olhos estamos em pleno gozo da vida adulta, livres, ‘respirando com as próprias pernas’. O problema é que, ao se tornar adulto ganhamos um leque de responsabilidades gratuito e incluso no pacote da vida. E aí a saudade daquele tempo moroso vai bater à porta, pode acreditar.
Aciona-se o ‘start’ do ‘corre-corre’. A vida nos leva como uma avalanche, dia após dia. Já ouviu falar em ‘matar um leão por dia’? O tempo parece nos escapar entre os dedos. Tentamos, em vão, abraçar o mundo. Nadamos contra a corrente.
Dom Quixote de La Mancha, o livro, resiste bravamente em minha estante. Com um marcador de páginas feito de cartolina rasgada e amarela, está inerte há anos na página duzentos e trinta e três. Toda vez que entro no escritório ele me olha de soslaio como quem diz: sossegue moço, tenho muito ainda a contar. Outro que me dirige olhares tristes e pedintes é o meu violão. Mal tratado o coitado de longa data não sofre uma limpeza com flanela, uma troca de cordas, uma afinação. Fica lá no canto, tocando o silêncio, murmurando músicas tristes, lamentando a própria sofreguidão. Meus discos, talvez, dos meus ‘prisioneiros’, são os mais vitimados da minha crueldade humana. São mais de trezentos, encaixotados, entregue às sombras, presos em solitárias, sem ver a luz do sol, abandonados. Quantas vozes estão ali? Quantas canções de amor? Quanta musicalidade, sonhos, interrompidos e confinados na escuridão. Teatro? Do que se trata? Não, não. Talvez aquele no tablado da escola. Realmente não sei dizer a última peça que vi. Desculpem-me. Ah sim, o último filme que assisti? Cinema. Não, não lembro. Esses dias um amigo me perguntou se eu conhecia ‘1001 filmes para ver antes de morrer’. A minha resposta foi automática. Amigo, eu já estou morto há um bom tempo. Eu só trabalho e trabalho e trabalho. Como diz aquela música mesmo? ‘Devia ter arriscado mais e até errado mais, ter feito o que eu queria fazer, devia ter complicado menos, trabalhado menos, ter visto o sol se pôr’.