Sobrevivente calada
Publicado em 26 de abril de 2019
O dia estava quente. Maristela chegou tremendo ao pronto-socorro quando foi atendida por Aline. A médica fez o primeiro atendimento ali mesmo e notou algo estranho no olhar da paciente.
Ao tirar a blusa, as marcas de espancamento ficaram visíveis. A dor no abdômen estava insuportável. Maristela fez um exame que mostrou que ela precisava de cirurgia urgente.
A médica pediu para avisar alguém da família, mas Maristela se recusou enquanto fazia novos exames que comprovaram o que a doutora Aline já desconfiava: a paciente tinha sido estuprada.
Pouco tempo depois, a caminho do centro cirúrgico, Maristela começou a chorar. A médica sabia o que estava acontecendo com a paciente. Ela tinha a real dimensão do que a mulher estava sentindo porque também já tinha passado pela mesma situação. Sim, a doutora Aline também foi vítima de estupro.
Com cuidado e carinho, a médica iniciou uma conversa e relatou a paciente o abuso que sofrera há exatos 15 anos. E foi então que Maristela sentiu confiança para contar tudo o que tinha passado horas antes de chegar ao pronto-socorro. As duas estavam ali, unidas, sem julgamento algum, cuidando da dor da outra, dando o suporte necessário naquele momento.
A médica contou que o marido dela soube da história e deu força pra que ela enfrentasse a situação de cabeça erguida. Maristela não queria contar ao marido. Tinha medo de que ele se separasse dela, que achasse que a culpa do abuso era dela. Tinha medo de ser julgada como tantas outras mulheres são.
Em 17 anos de casamento, o marido de Maristela sempre foi parceiro e participativo na educação das filhas. E agora? Como ela explicaria ao esposo o que tinha acabado de viver? O medo venceu e ela achou melhor dizer que caiu da escada.
Maristela é mais uma mulher sobrevivente que estava a caminho do trabalho quando foi violentada. O homem tinha um rosto conhecido. Ele trabalhava em uma padaria que ficava na região do trabalho dela. Ela nunca desconfiou de nada. Jamais imaginou que isso aconteceria.
A mulher pediu demissão do trabalho e vive com os fantasmas daquele dia que ela nunca vai esquecer. O estuprador segue solto, talvez trabalhando na mesma padaria e fazendo outras vítimas como Maristela que sobrevivem caladas diante de tanto julgamento.
Parte do que escrevo na coluna deste mês foi relatado em um dos episódios da série Grey´s Anatomy. A autora, Shonda Rimes, não divulgou se o caso relatado foi real. Mas, desde quando iniciei o Entre Elas recebo mensagens de mulheres relatando que passaram por situação parecida. O último dado disponível no 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que o Brasil registrou 60.018 casos de estupro em 2017, o que corresponde a uma média de 164 por dia, ou um a cada 10 minutos. E pensar que muitas dessas sobreviventes ainda não tiveram coragem de denunciar.
É por isso que escrevo. Não podemos nos calar. Essa situação precisa mudar!