Direito de xingar


Publicado em 5 de setembro de 2014

Finalzinho de tarde, Dona Antonieta caminhava a passos lentos pela calçada ansiosa por poder chegar em casa. Ao longe, vozes exaltadas se faziam ouvir, chamando a atenção dos transeuntes:

_ Eu não aguento mais! Terceira decepção de hoje. É decepção no trabalho, decepção com amigos e mais essa em casa ainda! P…. m…

A voz de mulher vinha ainda de longe, mas com brados e xingamentos tão altos, era impossível fingir que não se ouvia.

_ Não xinga assim, não. È feio falar palavrão – dizia outra voz de mulher que tentava apaziguar a situação.
_Xingo sim…c…m…p… Eu exijo meu direito de xingar! Eu quero meu direito de me revoltar. É só decepção nessa vida, que p… é essa? Vai… Eu não aguento tanta sem-vergonhice, já chega lá na fábrica, depois a fulana que se dizia minha amiga, agora isso, de casa? Xingo, xingo, xingo…

Dona Antonieta aos poucos se aproximava da casa de onde se ouviam os berros. Era uma casa bonita, daquelas que olhando de fora parece que lá dentro tudo é maravilhoso, mas como a gente sabe que as aparências enganam, os berros ali na bela casa rolavam soltos:

_ E tem mais, hein, eu vou pro banheiro. Vou encher aquela banheira de água quente e vou ficar lá duas horas, que ninguém venha me encher o saco.

_ Não pode. Lembra que não pode gastar água, nada de banho demorado, pelo amor de Deus e pelo amor ao próximo – disse a voz da outra mulher, aquela que parecia mais centrada.

_ P…, vai… Não posso nem tomar uma p…de banho demorado. Pelo menos posso deitar na minha cama sem tomar banho? Será que essa m…de direito eu tenho? Direito de descansar fedida, revoltada e xingando?

Nesse ponto, Dona Antonieta já se afastava da bela casa e estava próxima onde morava. Aos poucos, a gritaria foi sumindo. A mulher que xingava, revoltada pelas decepções da vida decidira se trancar em seu quarto sem tomar o tão sonhado banho longo, aquele que abranda as dores do corpo e da alma com água morninha e aconchegante, levando pro ralo as amarguras da vida.

Dona Antonieta abriu o portão e entrou em sua casa. Tudo calmo, sossegado, ninguém tinha chegado do trabalho ainda. Mais que depressa ela foi correndo pro banheiro, ligou o chuveiro e deixou a água morna levar as suas decepções também. Ela até pensou em sentar-se no chão (já que ela não tinha banheira em sua casa modesta) e ficar mais tempo ali, sentindo a água massagear suas costas doloridas, afinal ninguém estava vendo, mas desligou rapidinho o chuveiro ao lembrar-se da falta de chuva e da conscientização que todo mundo precisa ter e sem xingamentos foi descansar tranquila, afinal suas decepções, ao contrário da mulher revoltada, não chegaram a três naquele dia. Pelo menos, não naquele dia, até aquele momento.

 

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