Resquício


Publicado em 1 de maio de 2015

Era 3 de maio de 92, eu tinha apenas sete anos e participava de uma marcha na praça central de Iracemápolis — sem ter, claro, a menor noção disso. Com mais 30 ou 40 crianças, formava um bloco chamado “União Uniformizada” e seguia em direção ao coreto. Vestia um calção que cobria os joelhos e uma camiseta do São Paulo, em meio a tantas de outros clubes.

Pouco antes de chegar à praça, onde estavam milhares de pessoas, fomos orientados a seguir em linha reta, cabeça erguida e espinha ereta. Em todo o percurso, haveria só uma pausa, breve, para saudar as autoridades. Terminado o cortejo, retornaríamos e estaríamos, enfim, dispensados.

Muitos anos depois, li “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera, e aprendi que uma marcha nunca é “só uma marcha”. É, acima de tudo, a simbologia de algo. A obra trata de Praga, mas há símbolos que são universais, assim como a seguinte práxis: “A vida ordinária de pessoas comuns e a vida extraordinária da história”. Nada simboliza isso tão bem quanto uma marcha rumo às autoridades de um determinado lugar.

Volto a 92. Aquele bloco não significava a união pacífica das torcidas de futebol. Era, antes de tudo, uma marcha que saudava homens públicos, políticos, militares e eclesiásticos, embora jamais divulgado assim. Obediente, inocente e pacífica: uma marcha que atraía flashes e registrava, em cada Polaroid, a hierarquia pública da época, com o passo militar cadenciado por notas rítmicas de uma fanfarra.

Estamos 23 anos à frente e muita coisa mudou. Daquela manhã, só restaram algumas fotos no álbum de infância. Mas, se as fotografias permanecem iguais, com a peculiar capacidade de congelar o tempo, é porque há coisas que nunca mudam. Uma marcha, por exemplo, nunca deixará de ser uma marcha — não importa como a batizam nem o espaço/tempo em que é organizada.

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