Espiando Voltaire


Publicado em 4 de setembro de 2015

Abro a porta e observo-o a uma distância de mais de duzentos anos. Ele está sentado, mexe em um copo já vazio e olha pela janela o céu de brigadeiro. Sem espada ou canhão: é um dia de paz. Está calmo e feliz, só lembranças boas lhe vêm à mente: a última grande cartada, a última grande música, o último grande livro, a última grande ideia.

François Marie Arouet transborda tudo aquilo que o faz ser quem é. Pega uma caneta e escreve, serenamente, com a leveza de um pássaro em voo: “Todas as riquezas do mundo não valem um bom amigo”. Um acinte aos fracos de fraternidade, tão simples que só pode ser verdade. Numa frase, o resumo de tudo.

Dois séculos depois, fecho a porta e saio pensando nos amigos, em especial os da infância. Na ponta dos pés, para não chamar a atenção, sinto saudade: das brincadeiras, dos risos, dos pés sujos de rua, de jogar taco. Anos que se foram, soltos, com a certeza de não mais voltarem — mas que ficarão presos na memória para sempre.

Se as coisas verdadeiras são aquelas que duram, não é difícil perceber o que vale a pena e o que não vale. Por esse motivo, e só por esse, é preciso separá-las em duas categorias: as que merecem crédito e as que não merecem. Na primeira, fica o que permanece. Na outra, o que dura tempo irrisório e se apaga.

Por esse motivo, mas não só por esse, gosto de tudo que traz saudade: é a prova de que o tempo e a luta não foram em vão. Guardado, como aquelas coisas que ficam numa caixinha de sapato em cima do guarda-roupa, fica o que jamais deixará de ser importante para mim, mesmo que não signifique nada para mais ninguém.

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